(Primavera De Oliveira)
O ENGENHO GRITA NA GENTE
Grita na alma arranhada,
Arrancando a saliva,
O grito reprimido.
Dói o peito, sangra,
O sangue ferve.
Pensar enlouquece a gente.
Ah, a gente sente, ama e canta,
Uma beleza dolorida, cheia de dor
E ofensas.
O peito clama,
Um sofrimento latente,
Que continua encoberto, disfarçado,
Em carne exposta e dolorosa.
Ah, esse cantar em murmúrio.
Tem um moinho dentro da gente,
Igual cana que vai destroçando
E arrancando a gente
Do chão.
Olhamos para o céu,
E enxergamos o passado de sangue,
O caldo de cana fervendo,
A negra sendo estuprada,
O peito amamentando
E amando essa gente.
Gente de farinha de mandioca,
De rapadura escaldante,
De moinho engolindo perna de criança,
Da senhora da casa bonita e grande,
Do canalha Senhor molestador,
Autoritário e religioso.
Depois o padre na visita dominical,
Marcando igual gado o símbolo da submissão,
A dor pulsante e uma força tamanha,
A amar essa terra, esse sol escaldante.
Tem um engenho dentro da gente,
Que vai moendo nossa carne,
Nossa alma desatinada,
Nossos desejos profundos,
Transformados em mel,
A adoçar o paladar dos outros,
Enquanto o corpo escorre o suor,
De uma terra que clama justiça.
Tem um passado na gente,
Que caminha devagarinho,
E assombra,
Encanta.
E junto com o vento suaviza,
Quando o barulho do mato alto canta,
Junto com o finalzinho de tarde,
Sentimos a vida correr pelas nossas veias,
E um sentimento de pertencimento,
Acaricia nossa alma tão desenhada.
AH, TEM UM ENGENHO DENTRO DA GENTE.
Um dor que não sabemos de onde vêm,
Uma tristeza fininha, doída,
Que escorre sobre nossos ombros.
O engenho da gente amordaçado
Que insisti em abafar nosso grito.
Ah, queríamos o peito da mãe preta,
Acolhendo a gente.
É um país esquisito, tranquilo.
Com pensamentos em tormento.
Parece que o navio negreiro
Visita a gente em um sono sofrido, triste.
A gente tem um grito preso dentro do peito,
A carne moída em garapa e melado,
Feito de cobre, tacho com o fogo queimando
As cicatrizes expostas.
O vapor eliminando as impurezas,
Expostas pelo corte profundo,
Da saudade de um lugar longínquo,
E ligeiramente estranho.
Tem um engenho dentro da gente,
Um batuque que tira nossos pés do chão,
E emana um espírito alegre, cativante.
O chão pulsa sobre nossos pés,
Até envolver o coração no grito do tambor.
Tem um engenho dentro da gente.
Tal como um suplício de canto profundo,
E que mora lá dentro de nós, em silêncio.
Um canto que se toca lá no cantinho do olho,
truncado, sentindo a alma descansar
Depois de um dia de tormento.
O engenho habita na gente,
Em círculos vai rodando e moendo
Tudo que a gente gosta,
Vai dilacerando o peito da gente,
Sangrando até a carne ficar branca
E parada no meio do nada.
E lá na frente continua a colheita,
A terra fecunda
Que não sucumbe
Aos homens.
Somos esperança,
Sendo purgada na moenda.
A senzala canta um choro profundo
Que envolve cada parte do nosso corpo,
Da nossa pele,
E arremete para grito fininho,
De desespero e dor.
Ah, tem um engenho dentro da gente,
Que por mais avenidas que passamos,
Na hora do choro ele continua a se mover,
Purgar, transformar o pão doce,
Em saliva amarga,
Sentido o peito arranhar sem compreender.
Tem um engenho dentro da gente
O engenho grita na gente.
O sangue ferve no corpo da gente.
O olhar reflete savanas,
Gritos de ondas,
Os barulhos dos corpos remetidos, jogados,
No fundo do oceano.
A travessia da gente nessa vida,
Sendo purgada em caldeiras gigantes,
O homem vai sendo escorrido junto com o caldo
Da cana-de-açúcar, o melado de braços negros.
A vida negra sendo movida pelo moinho da injustiça.
O coração bombardeando em pequenos orifícios,
Extraindo o mel da vida, dessa esperança martirizada.
O engenho grita na gente,
Mesmo em arranha-céus, sentimos o vento gritar,
O barulho da terra, o tapa do vento,
Algo dentro da gente grita e sangra.
Existe um engenho dentro da gente,
Que clama o peito da mãe negra.
Somos tantas mulheres brasileiras,
Que mesmo em pele branca sentimos,
Uma angústia longínqua de terras estranhas.
Tem um engenho dentro da gente,
E ele grita que nem animal ferido.
Um grito que assombra,
E vai moendo a gente,
Que nem cana e aguardente.
Existe um pecado dentro da gente.
Que necessita viver!
Tem um grito dentro da gente,
Que quer rasgar nosso peito e sangrar o chão.
Tem um mar de morte dentro da gente,
Que sente as ondas engolindo nossos sonhos.
Tem uma dor dentro da gente
Que não sabemos de onde,
Sentimos uma triste intensa, distante,
Um grito fininho que vai consumindo
Nosso peito, vai moendo, triturando,
O rosto abatido, ficamos perdidos,
Num banzo estranho, como num sono profundo.
Somos navios negreiros em noites de tempestades
E relâmpagos,
depois somos arrastados por vilas,
Pontes de pedras envolvidos em óleo de baleia,
Mostramos nossos dentes, nossa glote,
Nossos músculos, virilhas e genitálias,
Somos consumidas que nem aguardente,
Tragadas em gole e cuspe,
Feridas e escárnio.
O engenho grita na gente
Na cama ensanguentada, na poeira sendo arrastadas
Entre o sopé e o viaduto, tudo é moído, consumido,
Nas melhores fornalhas de sol quente,
Iluminando a carne mordida, arranhada e o mel extraído
Da moenda, da purga, das fôrmas em formas de pão.
O doce é vendido, apreciado e moldado
Em sangue exposto, fervilhando em cobre,
Em tachos de cozimento do melhor caldo
Produzido pelo nosso engenho democrático.
(Primavera De Oliveira)
A página agora possui uma chave Pix para que você possa colaborar com qualquer valor! Anote a chave e contribua para mantermos novas histórias. Chave: catiacatia178@gmail.com