Cátia de Castro Dias
PEDRAS ENSOLARADAS
Germinamos pelas almas que nos regam. Mesmo a terra estando seca a vida pode suplantar entre pedras ensolaradas e crescer esbelta e bela.
I PARTE
Anda…
Entre espinhos, capoeiras,
Poeiras que infiltram na pele seca,
O caule ruidoso chamado homem.
Anda…
Em morros íngremes, caros,
Suplantando a dor da fome,
Carregando na trouxa o pouco possuído,
Junto com a família anda…
Carrapatos, lombeiras, taquaras,
E um deserto imenso se cria,
O vazio da fome já alucina
Não pensa em parar.
Anda…
Sem mesmo saber,
E continua a andar…
Na sombra descansa,
Come a ultima farinha seca.
O corpo adormecido
E o andado desaquecido.
Na boca a água sem gosto ,
Entre feridas a paz esquecida.
E então, levanta para andar,
Anda…
Mais uma subida não sentida.
A dor adormece anestesia.
E agora desce, desce,
Sem saber para onde, desce,
Neste trajeto distante,
Desse sol quente, sem compreender,
Aceita, sem pensamentos.
Só a andar…
Anda…
Enfileirados, dispersos,
Distraídos, reunidos.
Entre galhos secos.
No meio de pássaros negros,
Esqueletos de animais desfeitos.
Com o barulho do vento,
No rosto envelhecido, continua a andar.
Anda…
A vida um andado desatinado.
Despedaçado, fragmentado.
Coragem incompreendida.
Busca infinita.
Do andado miúdo, mocho.
No céu o sol sem nuvens.
Queimando a flor, construindo dor,
Do andar, do falar sem guiar,
Para o que não compreendemos,
Nem vivenciamos ou mesmo lutamos.
Anda…
Sem mesmo alterar esse andar,
Ainda anda,
De jeito desfeito.
De mãos rachadas, gastas.
Com galhos a chicotear,
O corpo, a alma arranhada.
E continua a andar.
Até chegar a algum lugar.
Mesmo que momentâneo.
E, então, o corpo descansa,
Para depois andar,
Com os pés vazios,
E com a força da vida,
No seu bocejo do dia,
Com a família sofrida,
Sem um sono adormecido.
Com o passar das horas,
A ilusão de viver do que comer,
Nesse bucho da história,
No trajeto caminhado,
Dessa espera adulterada,
Nesse aborto miserável,
Que o andar não cessa,
E a morte não suplanta.
Mesmo que não coma,
Durma, ande, cante.
Sua existência a nossa semente,
Crespa, seca, entre manchas,
O caminho não construído.
Que alguns continuam a desafiar,
A lutar por esse viver ensolarado.
Anda…
Mesmo em pedras,
Favelas intoxicadas,
De vidas arruinadas.
Anda…
Sempre a andar.
Como se o falar,
Fosse um andar.
De desafetos, de fetos prematuros,
Entre vidas duras,
O orvalho preenche a manhã do andar.
Que se cruza entre pedras,
Poeiras, carnes apisoadas,
Músculos batidos, escuros.
Anda…
Nessas linhas retas, certas.
Que o caminho não congrega,
E a febre desabafa com seu bafo,
De miragens nos olhos embasados,
De quem se esqueceu.
Na luz obliqua agora o luar.
Querer entender os motivos,
Os passos pesados, padecer.
Sem sofrimento Deus num atende.
É a sina do homem empurrado,
Para as ribanceiras da fome,
Que agora o consome.
Com suas próprias mãos cava.
A terra seca para nela o filho enterrar.
Com galhos secos, a cruz seca.
Marca o fim e o começo,
Para aqueles que nela sobrevivem.
De novo o andar, mais entristecido.
Mais vazio, lamentações.
O filho alimentado,
Por pedras ensolaradas.
Nos rastros a ausência,
Que a fome cria.
Nas terras secas fecundam os homens,
Enterrados pelos sonhos.
O alimento em cima do corpo germina,
Aflora o bulbo, a vida dispersa,
Pela terra mesmo estando seca,
E nela o homem anda.
Anda…
Com o coração lânguido
As feridas ensanguentadas,
Nas costas o peso da fome.
No rosto a face faminta
Caminha para a vida,
Vazia, travando lutas,
Contando amarguras, anda.
O homem ao longo de sua vida cria trajetos em sua luta continua, nessa vastidão incompreensiva, no caminhar constroem moradas, se relacionam, reúnem vivências, sabores e dissabores de um cotidiano. Nessa esfera ambígua, dessa vida indecifrável o homem caminha.
Em cada andado uma luta, uma história, uma memória que ao longo de suas vidas vão se constituindo, reunindo relações diversas. Nas praças, nas escolas, entre barracos, noticiários pessimistas, vidas vão sendo feitas, ou mesmo desfeitas, pelas misérias impostas o homem vive, sobrevivem, caminham para o que diz ser soberbo.
Todos os dias são dias de lutas, de alegrias e amarguras, empurradas para longe de nossos olhos, esse homem caminha travando lutas. Sabemos que a vida nem sempre é doce e singela, mas para as pessoas afastadas dos centros urbanos, dessa sociedade compreendida com “civilizada”, são poucas as horas doces e singelas.
II PARTE
Como pedras ensolaradas.
Em noites de lua clara.
Nas manhãs de araucárias.
O sol caminha na sombra,
Fresca que o céu não viu.
Querer ser borboleta toda manhã de orvalho.
Lutar para subir o morro.
Morrer entre espinhos.
Na subida do destino.
Que lindo dia,
Que agora faz.
Como posso caminhar até o deserto?
O universo é mesmo um tédio!
Famílias ensolaradas caminham,
Por estas páginas secas de sol ardente.
Queria ter colocado um destino
Melhor, mais doce para eles.
Mas a miséria não é sutil,
Ou amena, é seca.
Feita de carnes secas.
De olhos arregalados.
De ossos estufados.
E passos fortes.
A miséria não é sutil ou amena.
Dói a garganta ao engolir a saliva.
Doem os olhos ao ver o lixo contaminado.
Os morros que nunca são ultrapassados.
Diferente daquelas montanhas,
Que escrevi para Paulo.
Os semblantes são mesmo distantes.
Devo dizer que queria ser melhor.
Entre caminhos pisei em pedras.
Virei pedras ensolaradas.
Sabe? Queria ter virado flor.
Em meio a roseiras virei dor.
Quis mesmo ter até calor, amor.
Mas durante a caminhada.
Vi a miséria saindo do nada.
Queria ter virado pão, Paulo.
Mas virei pedras que não alimentam.
Essas pedras ensolaradas.
Já não sei mais se escrevo,
Ou acompanho essas famílias.
Estou tentando dar nomes, rostos,
Para essas pessoas, mas não consigo.
Quero escrever sobre o abismo.
Sobre a cava onde os corpos dormem,
Onde o homem se alimenta de sonhos.
Virei pedra, como pedra, vivo pedra.
Na pedra que a doçura da nuvem
Não alcança, não descansa essa face magra.
Vejo Deus mais feio,
Sabe ele das poeiras,
que nos caminhos se levantam,
para no rosto trincar a alma,
que a água por mais abundante,
não lava, não disfarça.
Vejo Deus mais feio.
Nos caminhos traçados pelos homens ao longo de suas vidas, vão deixando rastros e vivências de um cotidiano que se cruza nas trajetórias de outros seres, e assim um universo imenso se cria. Porém, Deus já não é mais tão belo, onipotente, apenas uma semente que quer germinar e nem mesmo sabe onde. Caminha e não germina, cresce e não floresce, apenas anda, como se tudo fosse apenas um andar.
III PARTE
Anda…
O sol agora já domina,
Esse homem que não come.
Come e não sonha.
.
Quer encontrar um lugar
Uma morada nova.
Uma esposa nova.
Talvez uma vida nova.
Os urubus sobrevoam,
As carcaças,
E o homem na sua caça,
Caça morada, namorada,
Uma amada.
Os urubus os cercam,
Sobrevoam, comem,
Farejam miséria,
Em pedaços, miséria.
Na terra a miséria.
Nos passos o homem.
Na terra o homem.
Neste papel o homem.
O homem!
Que você leitor não vê,
Não sente o cheiro .
O sol queimando.
A água sem gosto.
Pedras ensolaradas,
São carregadas.
O filho não caminha.
Não suporta mais.
Sabe ele se parar,
A terra engole,
Como um copo d’agua,
Que da lembrança sente.
Anda…
Agruras.
A loucura humana.
Manhã entre sol.
Entre veredas.
Entre espinhos.
Pedras!
Pedras dispersas,
Que se guiam,
Até montanhas.
Cruzam,
Ultrapassam,
Estão vivos.
Anda…
A vida se tornou
O próprio andar.
Por vezes feitos,
Esculpidos.
Nas pedras,
Neste sol.
Neste capricho
Do destino,
No caminho,
Caminha,
Este homem.
O homem feito,
E agora desfeito.
Passa por uma roça,
De milho verdejante,
Os olhos brilham.
Não é seu.
Não semeou.
Não vai colher.
E nem comer.
Só a caminhar.
Até o vento.
Distante.
Os sonhos se dissolveram na terra que a poeira levou. O vento distante trás o barulho inconfundível dos carros. Já pode atravessar aquela montanha. O que espera o homem? O que esse homem espera? Ilusões? Sonhos? Esperança? E a terra doce e fértil dos milhos verdejantes, foi esquecida? Só ficaram lembranças das carcaças, das poeiras, das pedras ensolaradas? Pedras urbanas. Homens urbanos. Deus urbano. A lona negra da cor dos pássaros negros sobrevoando as carcaças. O barraco construído nas margens da periferia, o homem para. (Cátia de Castro Dias)
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