Ela era muito bonita

Summary

Ela era muito bonita

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Ela era muito bonita

Era hora de levantar. Acordava ela, e depois ainda no frio da manhã, pegava a mesma vasilha para fazer o café. O mesmo caminho de todos os dias. Minha mãe dormia tranquilamente, fortalecendo seus músculos de ausência.

No álgido da manhã dizia para ela se apressar:

-Já vou!

-Então, não demora!

Chegava com o pão quentinho. Tomávamos o café rapidamente. Ainda tínhamos muito o que caminhar para chegar à escola. Não lembro se conversávamos. Acho, que eu era o brinquedinho que ela guardava com carinho. Com tanto zelo, tanto cuidado.

 Mas, tenho realmente dúvidas se ela me via. Até hoje, acredito que ela me imagina como uma pessoa distante, egoísta algumas vezes. Que eu não retribuía todo o zelo que ela tinha por mim. Acredito que ela gostaria de ter mais atenção. Cartinhas românticas e, que eu ligasse mais vezes.

Sempre repeti para mim mesma que eu nunca iria ser professora. Era a pior profissão imaginada. Acordar todos os dias no mesmo horário. E ter que se dirigir para o mesmo local. O mesmo bloco quadrado de concreto contendo lousa escura. E todos os dias o giz correndo nesse espaço. Crianças sentadas e silenciadas. Trágico! Nos tornamos aquilo que não queremos. Negamos nós mesmos. Maldições do destino! Maldições da infância.

-Hei!? Vamos pular cordas!

-Vamos!

-Hei! O recreio está acabando!

-Deixa a gente pular também!

-Como ela nunca erra? Credo!

Nesses momentos eu parava de assistir aos capítulos das novelas e encena livremente a minha vida. Ela sempre chegava no final do recreio para saber se o brinquedo estava bem. Nunca lembro dela ter passado um intervalo inteiro comigo. Nunca sentou no refeitório comigo, ou me acompanhou ao banheiro. Nunca fez um lanche comigo.

Ela era distante!

Fugimos da realidade. Não é mesmo!? Colhemos brotos amargos!

Ela era muito bonita!

A campainha toca absurdamente. Já tinham se passados dois anos depois do fim do golpe militar. Mas a escola mantinha a postura cívica militar.

No outro dia fila e hino nacional. Mesmo para alunos que estudavam a tarde e o pátio sendo coberto pela luz do sol. Hoje, penso nas horas que eram destinadas a esse ritual. Poderiam ter sido utilizados na aprendizagem. Mas, não! O importante era se a fila estivesse reta e na altura certa. E, para isso começava-se com os menores, até alcançarem o mais alto e distante dos alunos. Nunca sabia o que estava acontecendo no final.

Eles eram felizes!

Estavam mais longe dos olhares.

-A fila está torta!

-Silencio! Silêncio!

-Já vai começar!

E começava. Para mim só tinha sentido a postura. A postura correta e o silêncio. E aquele ritual terminava. E começava mais outro. Fila na entrada da sala. Fila nas carteiras da sala de aula. Fila na hora do intervalo para irmos ao refeitório. De novo filas até alcançarmos o lanche. E depois aguardávamos na fila dentro do banheiro esperando para utilizarmos o sanitário, ou o único espelho. Fim de intervalo.

Novamente para a sala de aula. E finalmente um momento bom. Hora da educação física, ou educação moral e cívica. Por que novamente as filas se alternavam. Filas de meninos. Filas de meninas.

-Façam uma fila para arremessarem a bola!

-Hoje vai ser apenas vôlei!

-Todo mundo jogando! Gritava o professor.

-Hoje todo mundo vai aprender a sacar!

Adestramentos de humanos. Chamadas.

Ah! Já escrevi isso quando tinha meus vinte anos…

Mas, é sempre bom recordações sobre aquilo do qual fomos forjados, moldurados sobre o céu de regras.

“Cobertores nas calçadas.

Mãos debaixo de semáforos,

Enxadas no asfalto das cidades.

Humanos puxando carroças.

Caroços duros dessa difícil vida,

Não consigo compreender.

Filas, quarteirões, filas, leitões prontos

Para o abate, formulários,

Entrevistas, honorários,

Horários, sábados, domingos.

Chega!!!!!”

É, realmente chega. Como crianças em pleno voo podem ser abatidas todos os dias!? E quando adultos, suas poesias refletem filas inconscientes do inconsciente. Cômico. Cômico a vida. Depois quando envelhecemos buscamos a liberdade e os outros, o outro, além de nós mesmos.

Engraçado, são poucos os momentos que lembro dela me acompanhando até a escola. Minhas lembranças são solitárias. Na volta para a casa passava por uma avenida coberta por lojas. Ficava olhando as vitrines enquanto andava. Não me era permitido parar. Aprendi sempre a andar. Sempre para frente. Não adianta parar. Ninguém se importa. Você está preso a você mesmo. Até hoje continuo a andar sem olhar para trás. Tudo é bom, pois o passado é autoritário, cheio de mordaças, gritos moldurando a alma.

O presente é bom, mesmo que os dias sejam solitários e as horas facas afiadas de um destino incerto. Vivemos conflitos urbanos de nós mesmos todos os dias. Mentes urbanas que mente a si mesmos. Mentes insanas. Corrosivas. Mundo de regras. Tantas regras que chegam a ser belas.

Ela tinha os cabelos mais lindos da escola. Eram negros de um cacheado livre. Sempre sorrindo. Toda vez que me encontrava rapidamente era sempre sorrindo. Sempre com uma amiga ao lado. Ela gostava de ter amizades. Talvez para que outras comtemplassem sua beleza. Olhava para ela como algo belo, sempre seguia. Talvez fossem parte das regras. Seguir.

Minha irmã sempre foi bela! Procuro na minha infância sua presença.

Minha memória é pequena. Apenas doces momentos. Obrigada pela companhia, sem você o mundo teria sido muito mais cruel. (Primavera De Oliveira)

***

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