Contos Surreais: Dalila

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Contos Surreais: Dalila

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Dalila

As portas ligeiramente se entreabriram mostrando as partes das carnes desfiguradas. Eu apenas queria mais um trago, outro cigarro ou um gole de bebida barata. Natanael foi um anjo na minha vida, quando os delírios da abstinência sobressaltavam minha alma, ele gentilmente devorava meu corpo. O sexo intenso e agressivo arranhava minha carne desmesuradamente, e em febre eu pedia mais um pouco de bebida, depois o cachimbo e o vício saciado. Ficava noites perambulando sobre o luar, e na intensidade da vida sentia todos os prazeres expostos e saciados. Meu corpo pulsava, e quando consumido dilatava em febres ardentes. Na boca ainda sinto o gosto da noite, e todas as suas meretrizes decadentes.

Acredito que tenha sido já no final de novembro quando as chuvas começaram a ser mais intensas, os rostos já me assombravam. A noite me atormentava em vultos delirantes. As pedras consumidas em estalos pelas ribanceiras dos becos. Depois o sexo me oprimindo contra o muro, desfalecendo a lucidez. O escárnio sendo derramado sobre minha face. Busco na lembrança meu singelo nome sendo pronunciado pelo meu amado.  Dalila! Pude sentir o cheiro das minhas flores que eu ostentava sobre minha varanda. Eram tão belas e delicadas. Dalila flor de pétalas comestíveis e com sua raiz, pode ser extraído um extrato doce e aromático, além do amido em abundância, a frutose para os diabéticos. Uma verdadeira flor, bela, com linhas brancas finíssimas nas pontas de suas pétalas, e tão bem desenhadas. Mas agora apenas o extrato negro sobre os dentes, correndo a alma áspera e asquerosa.

Os homens de repente começaram a negar minha seiva, e o meu corpo apodrecia pedindo todos os tipos de metais corrosivos. Os passos cambaleavam sobre os paralelepípedos da ladeira próximo do beco. A minha mente sabia que não poderia fazer aquilo, mas a porta estava cerrada e as janelas abertas. Natanael dormia profundamente, e debaixo da cama alguns punhados de ervas e um pouco de dinheiro. Meu corpo agradecia a cada tragada. As estrelas brilhavam majestosamente. Lembrei de minha pequena Emily e seus cabelos cacheados. O golpe que me acertou foi profundo, meus olhos não conseguiam compreender aqueles vultos, mas as risadas, e o escárnio jogados sobre meu corpo era conhecido. Minhas mãos estavam amarradas juntos com minhas pernas ligeiramente afastadas.

Não conseguia compreender aqueles barulhos que pareciam de construção, carros enfileirados. O barulho começou a ficar mais próximo, a máquina rodava ligeiramente, meus olhos apavorados sentiam a dor latente, desumana, absurdamente assustadora. Infinitamente desumana. O corpo sendo cortado em pedaços picados, e a máquina girava constantemente. O quarto ficou alagado com meu sangue e cheiro apodrecido. As garrafas de bebidas caídas. O isqueiro molhado, as notas sobrepostas sobre o tamborete. As paredes balançavam juntos com os meus gritos ensurdecedores. Natanael abria longas nuvens negras, seu sorriso alucinado parecida comprimir aquelas paredes sombrias. A cama começou a se mover terrivelmente. Meu corpo sangrava, empalidecia suavemente, minha cabeça formigava, e um sono profundo tomou conta do meu ser.

Senti o saco sendo amarrado grotescamente, e depois arrastado pelos corredores. E um brusco impacto, me senti sendo jogada no porta malas do carro, e a mais completa escuridão tomou conta dos meus olhos. Estava completamente comprimida, como uma criança presa no armário. A escuridão era estarrecedora. Estava presa em um cubículo que me atormentava. Tentava inutilmente vencer aquela escuridão, empurrar aquelas paredes de sombra. Parecia que eu descia cada vez mais para um buraco infinito. Não sentia o chão sobre o meu corpo nem algo acima de minha cabeça, mas sabia que descia e ao mesmo tempo rodava, e a escuridão me envolvia. Em segundos uma eternidade maldita. Não conseguia gritar, nem sentir o meu corpo, apenas o devaneio e loucura me consumindo. Depois os vermes e a escuridão.

Nesse momento após tanto infortúnio sinto uma paz infinita, os sentimentos se acomodaram. O escuro agora não me atormentava, nem agita minha alma, somente uma paz duradoura e angelical. Hoje sei que através dessas sombras minha consciência procura meu anjo negro. A lembrança do martírio confortou minha alma.

Procuro nas minhas lembranças seus beijos de afeto e escárnio sentidos vividamente em meu corpo. Ainda sinto meu corpo sendo arrastado, embrulhado e depois jogado no rio próximo ao beco que tanto amei. Nada conforta tanto meu ser quanto sua lembrança.

(Primavera de Oliveira)

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